Não trago nesse pequeno artigo, e em minha insignificante ignorância, o mundo lindo dos “otimistas inescrupulosos” de Scruton; mas posso lembrar alguns fatos que fariam Thanos sorrir…

Por mais de trinta anos vi colegas do mais alto gabarito profissional lutando para decifrar a cabeça do passageiro (e do país), e assim escolher o canal, o produto, preço e levantar a curva de vendas e margens. Meu testemunho aqui é de trabalho duro e sério dessas pessoas.

É verdade que há um bom percentual de acertos – senão não haveria empresas tão bem-sucedidas, esporádica ou rotineiramente; mas não é menos verdade que cada vez acertamos menos, especialmente agora, na era dos algoritmos, das narrativas estratégicas e das estimulações contraditórias.

Desde março, vimos a narrativa da “retomada” (que foi murchando quando a realidade se impôs), “novo normal” (se é normal, supostamente habitual e aprovado no teste do tempo, por que é novo?), passando pelas infindáveis lives, treinamentos, posts de promoções (com o famigerado whatsapp marketing) até que, felizmente, paramos de tentar a clarividência e assumimos que pouco, ou nada, sabemos – ou temos uma ideia, suficiente para criar uma linha de defesa mínima para nossas cidadelas profissionais.

As operadoras – nossa referência neste artigo – já se depuram há algum tempo; em um mercado de muita oferta e menor demanda desde 2013, Darwin já atua e continuará atuando em 2021.

Menos clientes, tarifas não tão benéficas (lembrem que muitos fornecedores estão atuando diretamente nos agentes e nos passageiros), margens menores, custos operacionais insanos, aviltamento de comissões, pouco ou nenhum hedge cambial, decisões estratégicas reativas…

Os fornecedores das operadoras (brokers, hotéis, receptivos), reduzem prazos e crédito, já que faturas em moeda forte não foram pagas lá atrás e as dívidas em reais serão renegociadas, com provável alongamento e nova precificação (margens, prazos).

Sem falar na bolha de créditos de viagens, prestes a estourar (alô aéreas, alô operadoras, alô fornecedores!) e que deverá dar muito trabalho aos colegas advogados.

A oportunidade de agências de viagens tornarem-se operadoras de seus próprios clientes será pouco aproveitada: falta dinheiro, expertise, incentivo e coragem. Opção por parceiros confiáveis e que entreguem será cirúrgica.

Já os brokers fornecedores no Brasil se reduzem pela inviabilidade econômica pontual de estabelecer CNPJ no Brasil (e todos os custos que isso implica), receber em reais e pagar moeda forte, e apenas em países com acordo de não-bitributação.

Já prejudicados em suas receitas devido ao default das operadoras – escolhem OTA’s (v.g. Trip.com e Booking.com), para conceder acesso aos seus inventários (por sua vez já contratados e pré-pagos há tempos antes da pandemia), que precisam ser vendidos.

Essa ação é um claro bypass às operadoras, oferecendo mais uma fonte de receita aos brokers já estabelecidos no Brasil, com receitas em reais e pagamento em países com acordo de não-bitributação (v.g. Hotelbeds, Restel, TUI, TBO Holidays).

Nas cias aéreas, observamos a redução drástica da oferta e aumento de tarifas (movimentos clássicos no setor), com um agravante: a bolha de crédito criada em março e abril, cuja fatura será cobrada em algum momento, levando o pessoal de forward bookings e revenue management a decidir quanto assentos vão para venda nova e quantos para os créditos velhos e já recebidos.

O mercado de luxo – grande esperança de recuperação para muitos – não entregou o esperado em julho 2020; TMC’s investiram em marcas dedicadas a este nicho, esperando compensar com lazer a receita perdida com viagens a negócios (creio que têm bnoas chances de sucesso, se tiverem o staff certo para essa abordagem).

Os agentes desse mercado de high end, que sempre venderam bem, já se adaptaram ao mercado nacional; a curva de aprendizado é curta para quem começa cedo.

Outros players – sólidas empresas e com visão estratégica – expandem sua rede de vendedores, “comprando” carteiras de clientes com espécie de representação com concessões recíprocas, onde o player dá acesso aos seus fornecedores e o agente renuncia a uma parte de sua comissão (em média 50%) como fee. Temos aqui a “uberização”, mencionada por Klaus Schwabb na sua “Quarta Revolução Industrial”

Todos os mercados sofrem pelo mesmo motivo: desconfiança e desinformação exacerbadas, o que causa pouca motivação para que os influenciadores desses nichos atuem para arregimentar passageiros.

Big One, o principal player e influenciador do mercado no Brasil, indica consideráveis perdas para 2020; reduziu sua estrutura, possivelmente abrirá mão, ou não lutará muito por eles, de mercados que não produzem o volume necessário para sua despesa operacional. Concentrará suas forças em redução de custo operacional e geração de volume em mercados ditos criadores de escala e riqueza.

Haverá a natural ocupação deste espaço deixado pela Big One, preferencialmente por mais de dois players, gerando concorrência e confiança do mercado comprador, ao mesmo tempo em que os fornecedores (hotéis, cias aéreas etc.), possam migrar seus acordos para mais players, porém com menos lugares (assentos e allotments).

Mas esse movimento tem prazo de validade, pois entendo que o futuro (muito) próximo será sem operadoras, com agências operando diretamente com brokers.

Mais Darwin (o que se adapta mais rápido), menos Hardy (o eterno reclamão).

 

Ricardo Cavalcanti é advogado e professor, com especialização pela Fundação Getúlio Vargas e atua na indústria do turismo desde 1983, em empresas do porte da H. Stern, British Airways, Marsans, Carlson Wagonlits e Hotelbeds.